POR FÓRUM ECUMÊNICO ACT BRASIL-COORDENADORIA ECUMÊNICA DE SERVIÇO (CESE)
Para os governos estadual e federal, os fazendeiros, jagunços e pistoleiros, as mortes de Alex Lopes, Vitor Fernandes e Márcio Moreira, ocorridas em duas comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul nos últimos meses, não são suficientes. Em visita à região sul do estado, a Caravana Ecumênica em solidariedade aos povos Guarani e Kaiowá do estado ouviu inúmeros relatos de lideranças indígenas vítimas dos recentes episódios de violência sofrida por esses grupos. Os testemunhos vão de tortura à negação de direitos básicos.
Diante desses assassinatos e do episódio que ficou conhecido como “Massacre de Guapo’y”, a Caravana Ecumênica formada por lideranças religiosas de todas as partes do país foi ao estado para prestar solidariedade a esses povos originários. Ouvir e ecoar suas denúncias para as instituições nacionais e internacionais que podem tomar medidas diante das graves violações de direitos às quais essas comunidades vêm sendo submetidas.
As denúncias dos povos Kaiowá e Guarani dos tekohas Jopara (em Coronel Sapucaia), Guapo’y (em Amambai), e Avae’te (em Dourados) são fortes: além das vidas que já foram ceifadas, jovens e crianças foram alvejadas por armas de fogo durante ataques. Crianças estão sendo impedidas de frequentar escolas, por serem de área de retomada. Professores ameaçados, caso queiram visitá-las. Serviços de saúde sendo deliberadamente negados. Mulheres, idosas e crianças sendo ameaçadas de estupro.
As violações de direitos nas áreas retomadas
O jovem Alex Lopes, de 18 anos, foi morto em maio de 2022, quando foi buscar lenha no entorno da fazenda localizada no território tradicional Taquaperi. Segundo as lideranças da comunidade, ele foi derrubado com um tiro e depois executado friamente – todas as perfurações de bala se encontram na região de seu peito. Seu corpo foi despejado do outro lado da fronteira com o Paraguai, a 10km dali, e seu túmulo ainda está aberto, à espera de seu corpo. Uma série de imprevistos o levaram a ser enterrado em outra cidade.
Em protesto contra o assassinato de Alex, o povo Guarani e Kaiowá retomou a fazenda no município de Coronel Sapucaia, onde hoje está o tekoha Jopara. A situação é de extrema negação de direitos. Lideranças afirmam já terem ouvido que as crianças que estiverem em área de retomada serão reprovadas nas escolas. Professores indígenas de outras aldeias são ameaçados em seus trabalhos, caso queiram ir ao Jopara.
Segundo os relatos, agentes de saúde dizem com todas as letras: “nós não vamos fazer atendimento à comunidade que tá na retomada”. Há crianças e doentes na comunidade, mas nem mesmo remédios são liberados para que as próprias lideranças levem ao tekoha.
“A gente sofre muito com falta de atendimento, em educação… Muitas das vezes, a Sesai não cumpre o papel profissional pra fazer o atendimento a nós nessa região da fronteira, deixa largado, deixa de ser atendido. Mas a Sesai é pra fazer atendimento à comunidade indígena! Nós não somos diferentes. Somos Kaiowá e Guarani”, afirma uma liderança.
O tekoha Guapo’y Tujury Mirim, em Amambai, foi o cenário dos casos mais recentes e violentos, onde Vitor Fernandes e Márcio Moreira foram assassinados – este, vítima de emboscada. O ataque protagonizado pelo estado do Mato Grosso do Sul, com cenas de execução e tiros disparados de helicópteros, ainda deixa suas marcas na comunidade. Um adolescente de 13 anos teve sua barriga aberta e é considerado um milagre, o fato dele ter sobrevivido. As pessoas feridas têm medo de ir ao hospital por receio de serem presas. Dentre os que foram levados, existem casos em que policiais patrulham os leitos constantemente.
O ato foi tão violento que o secretário de segurança do estado foi às pressas falar à imprensa, na tentativa de criar uma narrativa que contornasse o tamanho da violência. Ele acusou crianças, adolescentes e idosas Guarani e Kaiowá de serem traficantes e de terem danificado os equipamentos da fazenda durante a retomada. Uma perícia feita pelo Ministério Público Federal não identificou sequer um equipamento danificado.
As crianças que ele acusa de tráfico são as mesmas que receberam a Caravana cantando em ciranda, do mesmo jeito que retomaram o território que tradicionalmente lhes pertence. Os/as jovens são universitários/as da Faculdade Intercultural Indígena (FAIND). As idosas, ancestrais que carregam toda sabedoria e espiritualidade Kaiowá e Guarani adiante, ao longo das gerações.
A situação do tekoha Aratikuty, em Dourados, é de incessante tortura e perseguição. A comunidade foi noticiada em rede nacional, no programa Fantástico, da Rede Globo, quando em 2019 um trator foi alterado para funcionar como um “Caveirão” blindado e utilizado para atacar os povos Kaiowá e Guarani da retomada, destruir suas plantações e os barracos nos quais vivem até hoje. Atualmente, as comunidades ainda estão cercadas por fazendas, condomínios, rodovias e jagunços.
De todos esses pontos, pistoleiros intimidam, perseguem e ameaçam as lideranças. Dentro da área, foram construídas duas caixas d’água, que são administradas pela Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (Sanesul), mas que são patrulhadas por seguranças privados. Do alto dessas caixas d’água, homens iluminam os barracos a todo tempo, utilizando faróis de alta potência, relembrando técnicas de tortura às quais presos/as políticos/as da Ditadura Militar foram submetidos/as.
O relato de uma liderança mulher do tekoha é forte e envolve até mesmo ameaças de estupro. “Quando saímos da comunidade, eles nos perseguem e ameaçam, dizem pra gente não passar da rodovia. A gente precisa ir lá para comprar comida, gasolina. A gente sofre assédio sexual quando meu marido não tá aqui, gritam coisas pra nós. Para onde eu vou, tenho que levar minhas crianças. Minha preocupação são elas”, denuncia a indígena.
Em todas as comunidades – e não apenas as visitadas pela Caravana – a situação é de insegurança alimentar e extrema pobreza. Famílias vivem em barracos cobertos por lonas, lideranças não podem sair das comunidades e procurar emprego na cidade, pois precisam proteger seus territórios a todo tempo. Qualquer dessas saídas é utilizada pelos jagunços e até mesmo pelo estado como oportunidade para intimidação dos povos.
A luta por acesso a água
O caso do tekoha Aratikuty talvez seja o mais emblemático, no que diz respeito ao acesso a água nas reservas indígenas do estado. A falta de água é um problema crônico da reserva de Dourados. De acordo com indígenas que habitam a área, a situação foi agravada após a construção dos dois reservatórios com capacidade de 3 milhões de litros de água tratada. Eles denunciam a seca dos poços comunitários subterrâneos, o que impacta diretamente na vida das comunidades.
Apesar da grande capacidade de armazenamento de água das caixas, nenhuma gota é destinada aos povos Guarani e Kaiowá da retomada. Toda água à qual eles têm acesso hoje sai dos três poços artesianos cavados na retomada pelos próprios indígenas e é essa a água que a comunidade usa para beber, plantar, cozinhar, tomar banho. Uma liderança da retomada conta que já solicitou ao governo do estado a instalação de pelo menos um cano para levar água à comunidade, mas até isso lhes foi negado.
Antes de cavar os poços, era preciso se deslocar por cerca de 5km, para outra aldeia, para buscar água em um rio, encher baldes e trazê-los de volta em bicicletas, carros ou carrinhos de mão. A água desse mesmo rio hoje está contaminada pelos agrotóxicos usados nas fazendas que o cercam. “Tá contaminado porque eles plantam milho aqui e jogam veneno. Lá embaixo tem um lugar onde eles jogam as garrafas de veneno.” conta uma liderança.
Em Coronel Sapucaia, no Tekoha Jopara, a comunidade conta com uma caixa d’água, mas as lideranças já apontam que ela não é suficiente para abastecer as três regiões da reserva Taquaperi, também por ser uma região com altos relevos. Além de mais três caixas d’águas, elas dizem que precisam de um motor para puxar a água e destiná-la às outras áreas.
Próximo da área retomada, há um córrego que os Guarani e Kaiowá usam para se abastecer, mas se trata de um recurso igualmente contaminado pelos agrotóxicos e até mesmo por sabão. As lideranças alegam que os indígenas, principalmente as crianças, sentem dores de cabeça, diarreia e vomitam, devido ao consumo dessa água.
Em Guapo’y, na reserva de Amambai, os indígenas estão utilizando as estruturas de captação de água que já estavam instaladas na sede da fazenda retomada. Eles conseguem puxar a água dos poços e depositá-la em um reservatório e o recurso fica disponível para toda comunidade. Porém, antes disso, durante o período da retomada em que o grupo estava acampado a algumas dezenas de metros da fazenda, também era preciso buscar água em outra área da reserva.
As lideranças afirmam que apesar de terem água disponível na área da reserva de Amambai onde estavam confinados, não era mais possível se viver em condições dignas lá, pois não havia mais espaço para plantar ou criar animais e as famílias já estavam amontoadas umas nas outras. Por conta disso – e porque o território lhes pertence tradicionalmente –, as famílias resolveram retomar o Guapo’y.
Territórios tradicionais
Oito reservas indígenas foram criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região sul do Mato Grosso do Sul, ainda no início do século XX, com a finalidade de confinar os indígenas que ocupavam toda a região e liberar seus territórios para a colonização. Apesar do projeto original ter criado reservas com 3.600 hectares, a TI Taquaperi, por exemplo, possui hoje apenas 1.777 hectares, segundo a base cartográfica da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Algumas reservas foram demarcadas com uma área ainda menor do que os 3600 hectares que constavam no decreto e que já são poucos. Apenas essas oito reservas de MS concentram cerca de 80% de toda população Guarani e Kaiowá do país. Todas essas áreas têm em comum o fato de terem sido usurpadas de seus povos originários. Os cemitérios que guardam os corpos de seus ancestrais e estão localizados dentro das reservas são evidência de aquelas terras lhes pertencem. Os/as que ainda permanecem vivos/as contam histórias dos tempos em que viviam naqueles territórios.
A Caravana Ecumênica
O primeiro dia da Caravana foi marcado pela realização de um Ato Ecumênico em que as lideranças religiosas prestaram solidariedade aos povos Guarani e Kaiowá do estado. O ato aconteceu na Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS) e contou com presença de representações de igrejas cristãs luteranas, anglicanas, presbiterianas, católicas, de religiões de matriz africana, organizações ecumênicas, entre outras. Todas se comprometeram a ser voz que ecoa não só pra dentro das suas comunidades de fé, mas também para instâncias fora do país.
O Ato realizado em Dourados, na praça Antônio João, foi um momento de inter-religiosidade , em que as lideranças cristãs e indígenas se fortaleceram em momentos de espiritualidades, mas também de denúncias. Foram erguidos cartazes com os nomes de vítimas da violência do estado e dos fazendeiros sul-mato-grossenses ao longo dos anos. Jovens e lideranças gritaram por justiça pelo sangue derramado de seus parentes tantas vezes.
A Caravana levou doações de alimentos às comunidades, manifestou seu apoio incondicional aos Guarani e Kaiowá e se comprometeu a denunciar em instâncias nacionais e internacionais os crimes que vêm sendo cometidos contra eles – como a ACT Alliance, a Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas (CMIR), o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), a Conferência de Lambeth, a Aliança de Igrejas Presbiterianas e Reformadas da América Latina (Aipral) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Mônica Alkmin, integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), pontua que as visitas são muito importantes porque assim se pode ter um olhar mais ampliado da real situação dessas e de outras comunidades, para além do que chega pela mídia. “Constatamos graves violações de direitos humanos, de normativas constitucionais. O Brasil tem legislações e políticas que garantem esses direitos para todos. Se eles estão sendo violados, nós precisamos identificar imediatamente quem está por trás disso e tomar providências para responsabilizar essas pessoas”.
Sônia Mota, diretora executiva da CESE e pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU), afirma que o que motiva a ida da Caravana ao estado é o clamor do sangue indígena, mais uma vez derramado. “Viemos ser uma voz que faz ecoar esse grito de dor e por justiça. O relatório gerado aqui será traduzido em diversas línguas e nós faremos ele chegar em todas as instâncias nacionais e internacionais às quais temos acesso.”
A Caravana Ecumênica foi realizada pelo Fórum Ecumênico ACT Brasil (FEACT) e contou com a presença do presidente do Conselho do COMIN, Cristov Kayser. Esta é a terceira vez que o Fórum vem ao Mato Grosso do Sul para prestar solidariedade aos Guarani e Kaiowá no estado.