Desde o início das implantações das reservas extrativistas, tenho sido um entusiasta e um defensor do modelo, pois, além de dar certa garantia para a sobrevivência da floresta, representa a busca por viver um modelo econômico diferente, mais comunitário e igualitário. Nesse sentido, um homem que impulsionou a luta por esse modelo alternativo e talvez o mais conhecido foi Chico Mendes que, inclusive, foi morto por essa causa. Ele vislumbrou a aliança dos povos da floresta, na qual os pequenos que viviam da e na floresta poderiam lutar em conjunto e não mais uns contra os outros como tinha sido por séculos. Chico foi um mártir para aqueles que buscavam justiça e igualdade e seu espírito continua vivo alavancando a criação de novas reservas.
No entanto, na prática, a situação é ambígua. Acabo de regressar de uma viagem ao Médio Rio Purus e seus afluentes, Igarapé Mamoriá e Igarapé Seruini nos municípios de Lábrea e de Pauini no Amazonas, e pude sentir um pouco da complexidade da implantação de uma reserva extrativista. Estou falando da Reserva Extrativista Médio Purus, criada pelo decreto do dia 8 de maio de 2008. Os limites da reserva cercam as áreas indígenas da região. A idéia é que a reserva possa ajudar a proteger as áreas, mas, de fato, apresenta-se como uma forma de tentar impedir a revisão e o aumento da área das terras indígenas.
Nas margens do Igarapé Seruini, na comunidade de Cujubim, no dia 2 de março, participei de uma reunião com lideranças indígenas apurinãs, com dirigentes da reserva que vivem na comunidade de Limeira e com o Administrador Executivo Regional da FUNAI do Acre e Sul do Amazonas, Antônio Apurinã. Os apurinãs, que tradicionalmente habitam a região, mas que, por questões conjunturais da época, ficaram fora da área demarcada, apresentaram, ao administrador da FUNAI, o pedido de revisão dos limites das áreas indígenas Seruini/Marienê e Tumiã com o objetivo de incorporar suas terras na demarcação.
Explorando sustentavelmente os recursos naturais, os apurinãs viviam na região desde tempos imemoriais e agora, como eles denunciam, estão sendo proibidos de buscar o seu sustento. Todos os anos eles organizavam-se para quebrar as castanhas da mata, mas a partir desse ano foram proibidos e as castanheiras foram emplacadas e contabilizadas para o manejo exclusivo da reserva extrativista. Aos indígenas sobra apenas a opção de trabalhar como mão-de-obra barata quebrando suas próprias castanhas para outros. Ademais, também denunciam sofrerem discriminações, humilhações e ameaças com o intuito de desestimular sua permanência na região. Dizem que várias famílias já foram embora, muitas inclusive para as cidades.
Os dirigentes da reserva, por sua vez, deixaram transparecer que não estariam dispostos a abrir mão da área, pois é rica em castanha, madeira e peixe. Inclusive, no processo de levantamento da reserva, negligenciaram a existência de famílias indígenas vivendo na região. Para justificar a posse sobre os recursos naturais, apresentaram um mapa de toda a reserva, no qual, também, apareciam destacadas as áreas em conflitos, dentre as quais a área do Seruini. Qualificaram essas áreas em conflito como pressão e ameaça. A área do Seruini está descrita como uma área de pressão, demonstrando que existe uma resistência local e, ao mesmo tempo, um interesse em pressionar os moradores para que deixem a região.
O Administrador da FUNAI falou que estaria encaminhando o pedido dos indígenas para a revisão das áreas e incorporação do restante do Seruini. Comunicou aos representantes da reserva que dois indígenas seriam encaminhados para Brasília com o intuito de dar seguimento ao processo. Também pediu para que usassem o bom senso e que, enquanto não estivesse resolvida a questão, não explorassem as castanhas, de forma que, assim, se evitariam conflitos maiores. No entanto, pelo menos naquele momento, pareceu que essa opção estaria fora de cogitação.
Agora, pois, foi declarada oficialmente a disputa entre a Reserva Extrativista do Médio Purus e a Área Indígena dos apurinãs do Igarapé Seruini. Essa disputa será travada, assim esperamos, em Brasília. É o direito dos pequenos ribeirinhos que vivem na região pelo menos desde o início do século passado contra o direito originário dos povos que já estavam aqui antes da chegada dos europeus e que sobrevivem apesar dos séculos de mortes e perseguições. Mais uma vez vemos pequenos contra pequenos. Aqui, a aliança dos povos da floresta se desvanece e o interesse de cada grupo demonstra o quanto é difícil unir forças para lutar por um mundo mais justo e igualitário.