Quando trabalhamos, juntas e juntos, nós, a minoria, nos tornamos a maioria. E no meio de tanto preconceito que vivemos, no meio de tanta violência, chego aqui nesse espaço e escuto os parceiros falando palavras de consolo, penso que além do preconceito, ainda tem pessoas que estão conosco na luta. São poucos os parceiros, mas deixa a gente otimista. Fico muito grato por estar aqui, aprendi muito, sempre aprendo muito, e vou levar esse aprendizado para minha aldeia. Professor Zacarias Kapiaar Gavião.
Cento e vinte pessoas, indígenas e não indígenas, reuniram-se em Porto Alegre (RS), entre os dias 02-04 de outubro de 2017 no Seminário Interculturalidade: tecendo caminhos de justiça através de (con)vivências entre povos indígenas e não indígenas, comemorativo aos 35 anos do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN).
Para o COMIN, interculturalidade é ferramenta de luta. “Somos contra hegemonias religiosas e culturais. Somos pela partilha de saberes, pela construção de relações com os animais, com as plantas, com a natureza, com as pessoas. Queremos desconstruir conceitos polarizantes. Estamos abertas e abertos para a troca e o toque. Vivamos diversidades”, foi a mensagem motivadora que abriu o encontro.
Representações de diferentes povos indígenas estiveram presentes: Guarani e Kaingang, do Rio Grande do Sul e Santa Catarina; Laklãnõ Xokleng, de Santa Catarina; Tupiniquim, do Espírito Santo; Ikólóéhj-Gavião, de Rondônia; Huni Kui, do Acre; e Karajá, de Goiás, junto com as equipes do COMIN, da FLD, representantes do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e da Pão para o Mundo.
Conversas, troca de conhecimentos e trabalhos em grupo foram realizados durante o encontro. A condução ficou com a “costureira” e o “costureiro”, professora Severiá Maria Idioriê Xavante e professor Reinaldo Fleuri. Nos dias 02 e 03 de outubro, foram apresentados relatos de três experiências.
Saberes e Sabores
O Intercâmbio Intercultural de Saberes e Sabores, promovido pelo COMIN, vem aproximando mulheres Kaingang, da Terra Indígena (TI) Guarita, em Tenente Portela (RS), e as mulheres da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em Três de Maio.
“A proposta é promover articulações e diálogo intercultural e fortalecer a interação e a convivência de culturas diferentes”, disse a assessora do COMIN, Noeli Teresinha Falcade, que acompanha a iniciativa. Para isso, as mulheres da OASE já visitaram a TI e as mulheres Kaingang estiveram na comunidade luterana. São momentos de diálogo e de aprendizagem mútuos, quando elas apresentam seus trabalhos e relatam sobre seu cotidiano. “Elas estranharam nosso jeito, quando visitaram a Guarita. Mas estavam curiosas e prestaram atenção”, contaram as mulheres Kaingang. Para a presidenta da OASE, Márcia Müller Medeiros, os resultados estão sendo ótimos. “Queremos continuar com os intercâmbios”.
Magistério público para professores e professoras indígenas
Os professores indígenas Zacarias Kapiaar Gavião e Sebastião Kara’yã Péw Gavião, a professora do Instituto Federal de Rondônia, Lediane Butzlaff Neimog, e a assessora do COMIN, Jandira Keppi, relataram sobre a produção da Lei Complementar Estadual 578/2010, que trata do quadro de magistério público indígena no estado de Rondônia, da carreira de docentes e técnicos administrativos indígenas e estabeleceu a realização do concurso público específico para professores e professoras indígenas. “A lei é única”, afirmou Jandira. “Depois de um longo processo de luta de um grande coletivo, a luta agora é para seu processo de implementação”.
“Sou professor há mais de 20 anos, e sempre fomos contratados pelo Governo de Rondônia de forma emergencial, enquanto que professores de brancos eram concursados”, relatou Zacarias. “Conseguimos criar e aprovar a lei depois de várias lutas e várias ideias, com planejamento feito junto com um grande número de parceiros governamentais e não governamentais, entre os quais o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o COMIN, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Secretaria de Estado de Educação (Seduc), o Tribunal de Contas do Estado, o Ministério Público Federal e universidades”. A atuação da Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso (Opiron) e do Núcleo de Educação Escolar Indígena de Rondônia (Neiro), espaços de discussão e de articulação, também sobre terra, saúde e política, foi decisiva para o processo.
Zacarias Kapiaar Gavião foi o primeiro professor contratado via concurso público, para lecionar na sua aldeia. A lei determina o concurso público em três níveis: nível A, para professores indígenas com titulação no nível médio, com formação em magistério, para atuar na educação infantil e do 1o ao 5oano; nível B, integrado por professores e professoras indígenas com titulação em licenciatura plena, para atuar do 6o ao 9o ano e ensino médio; e nível Especial, para professores indígenas sem necessidade de comprovação de titulação, para atuar da educação infantil ao ensino médio, nas disciplinas relacionadas à organização social, usos, costumes, tradições, crenças e língua da comunidade. Todas as pessoas concursadas são indicadas para lecionar nas suas próprias aldeias.
Outro ponto importante é que prevê a estabilidade do professor, mas também a possibilidade de ele ser exonerado em caso de perda de confiança da comunidade, em razão do seu trabalho.
A luta agora é pela implementação. O professor Sebastião Kara’yã Péw Gavião lembra que: “o que a gente conquistou, não foi dado pelo governo. Não foi o governo que decidiu, nós conquistamos. Precisamos acreditar na nossa força e no nosso conhecimento, mesmo com o grande preconceito que sofremos”.
Sapopema
A experiência da Trilha da Sapopema, do povo Laklaño Xokleng, na serra do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, foi apresentada pelos jovens Jesaías Vaipon Patté, Ewerton Crendô e Eliton Weitschá. A professora Ingrid Lindner, da Escola Barão do Rio Branco, de Blumenau (SC), relatou sobre as visitas de grupos de estudantes à TI e os resultados da sua participação na Trilha.
Localizada na Aldeia Bugio, a Trilha da Sapopema surgiu como iniciativa dos e das jovens, em parceria com o COMIN, na busca de geração de renda, relacionada a sua cultura e dentro da sua aldeia.
Com 1.800 metros de extensão e a 950 metros de altitude, permite às e aos visitantes conhecer e caminhar pela Mata Atlântica e sua imensa biodiversidade. Durante a caminhada, há momentos de interação com a cultura indígena e, no final do percurso, uma parada em uma cabana tradicional, para degustar o Kapug, comida assada na taquara.
Nesta mesma cabana, anciãos contam histórias em seu idioma e a traduzem. Há também a visita ao Memorial Laklãnõ Xokleng, onde estão expostos utensílios e fotos, que contam a história e a atualidade do povo. Vivencia-se, ainda, um momento de canto de músicas e exposição e venda de artesanato tradicional, como brincos, colares, prendedores de cabelo, potes de barro e miniaturas de arco e flecha.
A inauguração da Trilha se deu em 2013, como resultado de um processo. “Jesaías, Ewerton e Eliton já são a quarta geração que participa da iniciativa”, disse o assessor do COMIN, Jasom de Oliveira. “Antes deles, muito trabalho foi feito.”
“A maioria dos jovens saía da aldeia, pois não tinha nenhuma perspectiva de trabalho. Hoje, a Trilha está trazendo os jovens de volta”, disse Jesaias. Para Ewerton, a Trilha está sendo incrível. “Com essa perspectiva, já não sinto vontade de sair da aldeia. É a minha casa, apesar de todas as dificuldades. Agradeço a parceria do COMIN, desde sempre, que também nos ajudou a fechar parceria com uma empresa de turismo, que está trazendo mais gente”. O mesmo depoimento foi dado por Eliton: “a Trilha faz toda a diferença e, com o apoio do COMIN, a ideia saiu do papel e está dando certo”.
A perspectiva de vivenciar uma cultura diferente foi o que motivou a professora Ingrid Lindner a promover viagens pedagógicas à Aldeia Bugio, com estudantes, professoras e professores. “Sabendo da Trilha, pensei no trabalho que se poderia fazer com as crianças, estimulando um pensamento reflexivo, um comprometimento social, conhecer outra cultura, outro modo de vida, aprender principalmente a respeitar e aceitar, sem preconceitos”. Desde 2013, Ingrid vem organizando, junto com a escola, as visitas de alunas e alunos dos quartos anos do Ensino Fundamental. Em um vídeo, depoimentos das crianças que estiveram na aldeia mostram que, para entender, sem dúvida, a palavra chave é “conhecer”:
– Eu achei que a aldeia indígena era que nem quando os portugueses chegaram no Brasil. Andavam de tanguinha, usavam lanças, arco e flecha. Mas quando cheguei lá, vi que não era assim. Eles têm internet, têm telefone. Eles têm a cultura deles, nós temos a nossa, é a cultura deles.
– Eu achava que eles moravam em ocas e que não se vestiam, e que se fôssemos lá, iam nos ameaçar, sei lá. Mas vi que era diferente. Vi que eles são como nós, e que são boa gente.
– Achei que eles usavam roupas de penas e de folhas e cocares, e que eles não iam para a escola. Lá eu vi que eles são que nem nós, só que tem uma cultura diferente.
Celebração
Na terça-feira, dia 03 de outubro, a noite foi de festa. Dois espaços foram organizados: uma tenda, para a celebração, que reuniu participantes do seminário e pessoas convidadas. O pastor João Artur Müller da Silva, integrante do COMIN na sua criação em 1982, foi homenageado, em nome dos outros componentes da primeira composição da organização: Sighard Hermany, Normélio Krampe, pastor Friedrich Gierus, pastor Arnildo Wilbert e pastor Edson Streck.
A celebração continuou no lado de fora da tenda, junto a uma fogueira, com alimentos preparados pelas mulheres e homens indígenas. Um momento diferente, de confraternização, conversa e de interculturalidade, como foi o espírito de todo o encontro.
Criação do COMIN
O COMIN foi criado em setembro de 1982 e, portanto, neste ano de 2017, celebra 35 anos de existência. Este Conselho foi criado pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), com o objetivo de assessorá-la e tratar das questões indígenas em seu âmbito.
Abaixo segue trecho do Boletim Informativo do Conselho Diretor, nº 79, de 14 de outubro de 1982, no qual foi publicada a criação do COMIN, em Reunião do Conselho Diretor da IECLB, ocorrido nos dias 23-25 de setembro de 1982, em Porto Alegre (RS).
“c.9) Conselho de Missão entre Índios – Considerando que o envolvimento da IECLB na questão indígena requer um grêmio que tenha a tarefa de acompanhar os obreiros na área indígena, bem como de providenciar a comunicação para dentro das comunidades, sendo ao mesmo tempo órgão assessor do CD em questões indígenas, o Conselho Diretor, atendendo a solicitação dos obreiros que atuam entre índios, criou o Conselho de Missão entre Índios e nomeou o Sr. Sighard Hermany, sr. Normélio Krampe, P. Friedrich Gierus, P. João A. Müller da Silva, P. Arnildo Wilbert e P. Edson Streck para comporem o referido Conselho.”