Com o tema “Acadêmicos Indígenas em Resistência: trajetórias, direitos e territorialidade epistêmica”, foi realizado o IV Encontro Regional dos Estudantes Indígenas da Região Sul (EREI Sul) entre os dias 27 e 29 de novembro na Universidade Federal do Paraná (UFPR) campus Curitiba. Participaram do encontro indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e estaduais do Paraná, além da própria UFPR.
O EREI Sul é pensado e protagonizado por estudantes de graduação e pós-graduação e por lideranças indígenas da Região Sul do país e teve apoio do COMIN e outros órgãos indigenistas. Durante os três dias do evento, estiveram presentes nas discussões temas como as violações dos direitos dos povos indígenas, políticas afirmativas estudantis e permanência de acadêmicas e acadêmicos indígenas na universidade, saúde e educação indígena e a atuação das mulheres indígenas no espaço político.
O grupo de dança Nen Gá, da Terra Indígena (TI) Apucaraninha (PR) fez sua apresentação na abertura do evento. A primeira mesa teve como tema “Lideranças indígenas e estudantes indígenas: olhares e perspectivas” e contou com a presença de Dona Gilda Kuitá, liderança indígena Kaingang do Paraná, Andréia Takuá, indígena Guarani de São Paulo, e Kerexu, liderança Guarani de Santa Catarina. Dona Gilda lembrou que as pessoas indígenas que estão na universidade têm o compromisso de buscar estratégias para a resistência. “Os fóg não querem que nós sejamos autônomos. Nós ainda estamos sendo colonizados!”, ressaltou. Andréia, que está na presidência do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Litoral Sul, mostrou preocupação em relação à saúde indígena. “Além da proposta de municipalização da saúde indígena, há também uma proposta de passar para as universidades. Essas mesmas universidades que nem nos aceitam em seus espaços, quem dirá estar em nossos territórios”, disse.
Saúde indígena
O tema da saúde foi destaque nas discussões da mesa “Desafios e enfrentamentos inerentes à promoção da saúde mental e medicina tradicional no contexto institucional da SESAI”. Jaqueline Rodrigues, indígena Kaingang e enfermeira da SESAI, afirmou que sente preconceito trabalhando secretaria. “Por eu ser indígena, as pessoas acham que eu sou menos capaz. Faço um apelo para que mais indígenas entrem nos cursos da área da saúde, a gente precisa ocupar esses espaços, porque só nós conseguimos estabelecer relações de confiança nas comunidades”, disse.
Adroaldo Vãgfy, liderança Kaingang de Santa Catarina, acredita que é preciso pensar em estratégias em relação à saúde indígena. “Temos que ocupar espaços nos municípios, nos Conselhos Municipais de saúde. Também ir conversando com nossos parentes, porque tem parente que não sabe o que está acontecendo. Temos que nos aproximar das equipes de saúde e quem está na universidade tem o dever de ajudar as lideranças a compreender, especialmente as leis”, argumentou. Na mesma mesa, Dona Gilda fez um apelo às pessoas presentes: “Vamos gostar de ser índio. Vamos se amar. Por que é assim que era, é assim nossa cultura. Vamos parar de querer ser fóg, porque nós nunca vamos ser fóg. Deus deu o conhecimento dos fóg pra eles e o nosso pra nós. Por que nós vamos ignorar o nosso? Nós temos a felicidade de aprender duas culturas, duas línguas”.
Márcio Bakairi, mestrando em Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aproveitou o espaço para falar sobre a necessidade do movimento indígena se apropriar da agroecologia como ferramenta de enfrentamento ao agronegócio. “A agricultura familiar, além de não ter incentivo, é altamente desvalorizada. Nossos jovens se encantam com o maquinário e a tecnologia que tem nesse maquinário”, disse. Márcio ainda acrescentou: “Agroecologia só será ciência para povos indígenas quando partir do nosso olhar”.
Território indígena
Na mesa “Território e Resistência: desenvolvimentismo e as violações dos direitos dos povos indígenas, enfrentamentos, estratégias, protocolos de consulta prévia”, Lucimara Patté, indígena Xokleng e graduada em Direito, lembrou que hoje há 722 territórios em diferentes fases no processo de demarcação, sendo que 486 estão homologados, com limites definidos, decretados e registrados; 74 estão declarados pelo Ministério da Justiça, já com expedição e portaria; 43 autorizados por GTs da Funai; e 119 em fase de identificação. Para ela, o governo Bolsonaro “reacordou o movimento indígena, especialmente para que voltássemos para as bases. E o direito indígena não se aprende na universidade, mas sim no movimento indígena”. Lucimara então questionou às pessoas presentes o que seria resistir a Bolsonaro. “Nós resistimos a governos que pagavam por nossos pares de orelhas. Indígenas não escolhem fazer parte do movimento, nós somos o movimento”, ressaltou.
Ivan Kaingang, liderança do Paraná, trouxe a realidade do estado para mostrar que a situação de miserabilidade com que vivem algumas pessoas indígenas na cidade é fruto da falta de território. “Nós temos 21 TIs demarcadas, o que representa 0,04% do território paranaense. São cerca de 80 mil hectares para cerca de 40 mil pessoas indígenas. O módulo do INCRA para assentamentos é de cinco hectares por pessoa e para nós são apenas dois hectares. Hoje, os Kaingang estão nos mesmos espaços em que sempre fizeram coleta, só que agora a cidade está lá”, afirmou. Ivan acredita que o fortalecimento da juventude é a principal estratégia a ser utilizada pelos povos indígenas e deu como exemplo o grupo Nen Gá, criado oficialmente em 2012. Sr. Marcolino, liderança Guarani do Araçaí (PR), reforçou a ideia: “Os mais novos têm que lutar para fora. Os velhos precisam ficar na aldeia, com sossego para poder aconselhar”.
Mulheres indígenas
As mulheres ganharam protagonismo na mesa “A atuação das mulheres indígenas no espaço político: direitos e bem viver indígena, o sagrado da existência em movimento”. Alguns nomes de mulheres indígenas inspiradoras foram trazidos à mesa, como o de Ana da Luz Fortes do Nascimento Fen Dó, lembrada pela professora Kaingang de Chapecó (SC), Nity Domingos.
Cristiane Pankarar, doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional, ressaltou a importância das mulheres estarem presentes nas discussões e nos espaços políticos das aldeias e lembrou que o machismo não faz parte das culturas indígenas. “Há um machismo que se coloca como cultural, mas isso não é verdade. Em nossas culturas, cada um tem seu papel e sua importância”, frisou. “Antes das brancas pensarem em feminismo, nossas mulheres já estavam nas matas junto com os guerreiros. Esse feminismo que está aí é branco”, destacou Lucimara Patté, salientando que os povos indígenas sempre foram coletivo. “Como que a dor de nossas mulheres deixou de doer em nós? Como aceitamos a violência com nossas mulheres? Já chega os não indígenas que violentaram as mulheres indígenas”, disse. Corroborando o argumento, Nyg Kuitá afirmou que as mulheres indígenas não são feministas “porque esse é um movimento das não indígenas. O que nós vivemos é um processo de retomada de lugares sociais de onde fomos arrancadas pelo processo de colonização”.
Dona Gilda Kuitá acredita que a religião tirou a mulher do seu papel de importância na coletividade indígena. “Diziam que tinha que ser submissa, vinham com essa história de pecado. Hoje, as mulheres fóg estão tentando viver como as mulheres indígenas viviam”, acrescentou. Ao final, Cristiane Pankararu deixou como desafio à juventude indígena estudar a legislação indigenista e entender seus instrumentos para pensar como isso cai dentro do contexto dos povos indígenas e suas comunidades.
Educação indígena
Por fim, a mesa “Educação Indígena e a Universidade: epistemologias, circularidades e o diálogo interinstitucional” trouxe importantes debates sobre a relação da educação indígena e não indígena. Kaingang e doutorando da UFRGS, Danilo Braga levantou o tema da violência contra os povos indígenas na educação. “Olhando toda a história de contato você percebe muitas situações de violência. Até mesmo quando se começa a exigir que indígenas tenham nome em português, que significava ‘dar alma ao selvagem’”, ressaltou. “A escola foi um instrumento para arrancar a nossa identidade. Mas, hoje, ela tá lá nas comunidades. Por isso, precisamos criar currículos indígenas, respeitando nossos ritmos, ouvindo os velhos. Quando nos fortalecemos enquanto povo, não há política ou preconceito que nos abalem”, destacou Nity Domingos.
Cristiane Pankararu afirmou que o relato da história indígena é a própria fake news e disse ter dúvidas sobre qual caminho seria o melhor: criar universidades indígenas ou brigar para que a universidade pública seja reconhecida como indígena, “O grande problema da escola é a sua finalidade: servir ao Estado. Saber lidar com essa sociedade e ter uma profissão é ‘render’ para esse Estado. Por isso, a educação específica e diferenciada é para mim uma utopia. Educação indígena nunca será para servir ao Estado”, frisou.