NOTA DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA
Coronavírus: solidariedade e políticas públicas
Brasil, 23 de março de 2020
Atravessamos em todo o mundo dias muito difíceis com o avanço da pandemia da Covid 19. Todos corremos riscos, principalmente as pessoas com nível de imunidade reduzida, como as mais velhas e as portadoras de enfermidades crônicas. Esses riscos são particularmente importantes para os mais pobres, aqueles que têm menos condições para seguir as orientações de autocuidado.
A atual crise sanitária exige ações rápidas e coordenadas para reduzir o ritmo de contágio pelo coronavírus. Essas ações devem envolver governos e organizações da sociedade civil. É sabido que o número de mortes causadas em decorrência da infecção pela Covid 19 é proporcional à velocidade com que o vírus é disseminado na população. Quanto maior for a velocidade da disseminação, menor será a capacidade hospitalar instalada de atender os enfermos em estado grave. Portanto, o isolamento social é a principal medida a ser seguida para reduzir o ritmo da transmissão comunitária do coronavírus.
Parcelas expressivas da sociedade têm seguido as orientações das autoridades sanitárias quanto ao isolamento social. Governos estaduais e municipais implantam medidas importantes para restringir a circulação e impedir a aglomeração de pessoas. Medidas têm sido tomadas também no sentido de incrementar as ações de vigilância e informação à população e de ampliar a infraestrutura dos hospitais públicos.
Na contramão das iniciativas de vários governos estaduais e mesmo de esforços importantes do Ministério da Saúde, da Fiocruz e demais órgãos de saúde pública de todos os níveis, a Presidência da República assume postura irresponsável e criminosa, deixando claro para toda a população a sua total incapacidade de assumir a liderança e de coordenar as ações públicas urgentes e necessárias que o momento exige. As atitudes obscurantistas e negacionistas de Bolsonaro tornam a crise sanitária do coronavírus no Brasil ainda mais dramática.
As pífias medidas econômicas até agora anunciadas pelo governo federal para mitigar os efeitos da crise sanitária para as trabalhadoras e os trabalhadores são uma demonstração inequívoca da negligência criminosa e cruel dos mandatários de plantão no Brasil. A publicação, em 23 de março, da Medida Provisória nº 927, que em poucas horas passou a ser conhecida como “MP da Fome e da Morte”, chegou ao absurdo de propor a suspensão de contrato de trabalho por até 4 meses, dispensando empregadores de suas obrigações trabalhistas e pagamento de salários. A reação fez o presidente recuar poucas horas depois.
É significativo notar que mesmo países que adotaram a cartilha neoliberal, tendo no decorrer das últimas décadas desmontado suas políticas públicas de saúde e proteção social, frente à profundidade da crise atual, tomam a iniciativa de reverter rapidamente suas orientações privatistas, com o investimento maciço nos sistemas públicos de saúde e em políticas de garantia de renda. A adesão cega à agenda ultraliberal nesse momento revela a opção clara do governo federal em defesa das elites financeiras e empresariais, deixando o povo relegado à própria sorte, desamparado pelo Estado.
A gravidade da crise torna urgente a reversão dessas orientações, com a retomada do papel do Estado na provisão de serviços públicos e de proteção social. É medida prioritária a revogação da Emenda Constitucional 95, que impõe um teto aos gastos públicos, retirando recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) e de outros serviços públicos essenciais. O SUS é uma conquista da democracia brasileira e um exemplo reconhecido internacionalmente. Ao expor a importância do SUS para a sociedade, a crise revela a falácia dos argumentos neoliberais de que os mercados tudo resolvem. Saúde não é mercadoria!
A pandemia agravará os efeitos da crise social e econômica vivida no País, causada pelas orientações ultraliberais da política econômica de Guedes e de Bolsonaro. Os mais pobres, das periferias das cidades e dos bolsões de pobreza rural, são os mais vulneráveis e os que sentirão mais intensamente as consequências dramáticas do baixo investimento no SUS e do desmonte do sistema de proteção social. Há urgência de respostas para o acolhimento das populações vulneráveis sem teto e em situação de rua. Movimentos feministas têm alertado para a situação específica de vulnerabilidade das mulheres, em especial para os riscos de aumento de casos de violência, para a realidade das empregadas domésticas, das profissionais de saúde e para o aumento da sobrecarga dos trabalhos domésticos e de cuidados, uma dramática realidade sentida de forma ainda mais aguda pelas mulheres negras das periferias.
Assumindo a responsabilidade que lhes cabe, os governos, em todos os níveis federativos, e as organizações da sociedade civil devem implementar, em caráter emergencial, um conjunto de medidas mitigadoras dos graves efeitos da pandemia. Movimentos, redes e organizações que fazem parte da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) já tomam providências práticas nos territórios em que estão presentes. Registram-se diversas iniciativas de esclarecimento às comunidades rurais sobre os cuidados sanitários que devem ser tomados e sobre a importância do isolamento social para conter o avanço do vírus. Atividades coletivas nas comunidades foram suspensas. Comunidades indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais definiram políticas de restrição de entrada de pessoas de fora em seus territórios.
Garantir a segurança alimentar e nutricional de toda a população, principalmente dos mais pobres nas cidades e nos bolsões de pobreza rural, é um desafio de enormes proporções. Nesse momento em que a atividade econômica sofrerá drástica redução, a intervenção decisiva do Estado torna-se ainda mais importante. O Estado deverá atuar em dois caminhos complementares para garantir o acesso aos alimentos à população: 1) Pelos mercados, ao assegurar renda para milhões de trabalhadoras e de trabalhadores, estejam elas/es formalizadas/os ou não, empregadas/os ou desempregadas/os. Além disso, é essencial o controle dos mercados no sentido de impedir a especulação com os alimentos; 2) Pelas políticas públicas de fomento à produção e de abastecimento alimentar realizadas, principalmente, em parceria com organizações da agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais. Alimentação saudável e adequada é um direito humano!
Movimentos sociais e organizações do campo, das águas, das florestas e das cidades que integram a ANA vêm apresentando proposições de medidas concretas voltadas a mitigar os efeitos sociais e econômicos da pandemia do coronavírus. Com base nesses documentos, em propostas que estão circulando amplamente no debate público e na agenda programática da ANA, apresentamos, abaixo, um conjunto de medidas emergenciais a serem tomadas no curto prazo:
Garantia pelo Estado, em seus diversos níveis, de renda de segurança em caráter emergencial no valor de 1 (um) salário mínimo para todas/os as/os trabalhadoras/es desempregadas/os ou que trabalham na informalidade;
Aumento do número de benefícios do Programa Bolsa Família e do valor do benefício para cada família, tendo como primeiro passo a liberação imediata de todos os benefícios bloqueados nos últimos 3 anos;
Isenção das cobranças de água, luz, aluguel social e distribuição de produtos de higiene para as populações mais pobres;
Aporte, pelo governo federal, de, no mínimo, R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). O Programa visa atender populações específicas em estado de insegurança alimentar e garantir renda para as/os agricultoras/es familiares. Deve ser operado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e os alimentos devem ser destinados aos órgãos públicos de assistência social, hospitais e às organizações da sociedade civil que atendem as parcelas mais pobres da população;
Aumento do orçamento dos programas estaduais de aquisição de alimentos da agricultura familiar. Instituição do programa em caráter emergencial nos estados em que a iniciativa ainda não foi efetivada;
Garantia do aporte dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)/Ministério da Educação para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), assegurando o cumprimento da obrigação de destinar, no mínimo, 30% dos recursos para compra direta da agricultura familiar, sem interrupção das chamadas públicas;
Que os governos estaduais e municipais, em coordenação com organizações da sociedade civil, construam logísticas de distribuição periódica de alimentos do PNAE às famílias das/os estudantes no período de suspensão do funcionamento das escolas, assegurando o cumprimento das medidas sanitárias de forma a evitar a transmissão do coronavírus;
Garantia do direito humano à água, com medidas de abastecimento emergencial pelos órgãos públicos às comunidades urbanas e rurais que não têm acesso ao serviço público de distribuição ou não possuem cisternas ou fontes próprias de abastecimento;
Suspensão dos despejos e da aplicação de liminares e ações de reintegração de posse em imóveis urbanos e rurais. Os despejos ferem o direito à moradia das populações urbanas e o direito à terra e aos territórios das populações sem-terra, indígenas, quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais;
Suplementação de recursos da Secretaria Especial de Saúde Indígena.
Para cumprir com as medidas sanitárias sem deixar de fornecer alimentos de qualidade para a população urbana, de forma autônoma e/ou em diálogo com os governos locais, as organizações do campo agroecológico estão realizando ajustes logísticos no funcionamento dos equipamentos de abastecimento. Sabemos que, em situações excepcionais como a que vivemos, há o risco de comprometimento ainda maior da qualidade da alimentação pela restrição da oferta de alimentos frescos e variados. Esse risco torna-se ainda mais grave pela importância que a alimentação saudável exerce na manutenção e no reforço da imunidade contra agentes infecciosos. A produção e o abastecimento de alimentos são serviços essenciais e não podem parar. A agricultura familiar e os circuitos locais de abastecimento são vitais e precisam ser apoiados pelos governos em todos os níveis.
Redes locais de solidariedade começam a ser acionadas, com a participação de organizações da ANA, com o intuito de garantir alimentação de qualidade para populações mais vulneráveis, principalmente aquelas em situação de rua. A ANA divulgará essas iniciativas em seus meios de comunicação para que elas sejam apoiadas e para que inspirem a criação de outras similares. Nesse momento em que pessoas em todo o mundo são obrigadas a se isolar pelo seu bem e das demais, a comunicação à distância é única forma de conectar pessoas e mantê-las informadas. Também nessa dimensão da vida social, revela-se a importância da comunicação como um direito e da internet como um bem comum.
Precisamos tomar todas as medidas necessárias e nos prepararmos para enfrentar o que vem pela frente. As comunidades do campo, das águas, das florestas e também das cidades seguirão cultivando, com muito amor e dedicação, alimentos, plantas medicinais e cuidando de nossas águas, solos e da nossa biodiversidade, orientadas pelos princípios da agroecologia. A ANA seguirá cumprindo o seu papel de dar visibilidade a experiências que respondem aos desafios concretos enfrentados pela sociedade, promovendo o intercâmbio de aprendizagens e influenciando o debate público sobre as orientações das políticas de Estado.
Nossa convicção é que a implementação de medidas emergenciais coerentes com os princípios da agroecologia e da economia solidária e com o princípio constitucional do Direito Humano à Alimentação Adequada, tão necessárias neste período crítico da história, iluminarão os caminhos das lutas futuras em defesa de um mundo mais solidário, saudável, igualitário, justo, democrático e ecológico. Seguimos, inspirados pelo mestre Paulo Freire, com os corações, mesmo que apertados, cheios de esperança!