Por Secretaria de Comunicação Social da Procuradoria-Geral da República
A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR) emitiu nota técnica em que defende a inconstitucionalidade da Medida Provisória 870/2019 e dos Decretos 9.673/2019 e 9.667/2019. No documento, o MPF afirma que a política indigenista instituída pela MP e pelos decretos afronta o estatuto constitucional indígena e viola o direito dos povos originários à consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, ao transferir a demarcação de terras para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a MP coloca em conflito os interesses dos indígenas com a política agrícola da União, e com as atribuições do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com prejuízo para os povos originários.
Na nota, o MPF defende que a demarcação de terras indígenas volte ao Ministério da Justiça, que seria um mediador isento no caso de conflitos de interesses. Assinado pelo coordenador da 6CCR, subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, o documento será enviado ao Congresso Nacional, que analisa a MP, a ministros de Estado e à procuradora-geral da República, Raquel Dodge. A PGR deve se manifestar na ação direta de inconstitucionalidade que questiona a MP 870, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Consulta prévia – A nota técnica lembra que, desde 2002, o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT. A norma garante aos povos indígenas direito à consulta prévia, livre e informada nas matérias que afetam seus direitos e interesses. O próprio Supremo já conferiu à Convenção estatura constitucional. Assim, ao editar a MP no primeiro dia de governo, sem ouvir os povos indígenas, o novo governo não observou o direito básico à consulta prévia. Por isso, a medida provisória seria nula e deve ser rejeitada pelo Congresso Nacional, defende o MPF.
Política integracionista – A Constituição de 1988 garantiu aos índios o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Também assegurou legitimidade das atividades produtivas indígenas, reservando-lhes o direito à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e às suas atividades. Essas garantias estão previstas no artigo 231, afeto ao Título VIII “Da Ordem Social”, enquanto a política agrícola está disciplinada no artigo 187, contido no título VII “Da Ordem Econômica e Financeira”, deixando clara a distinção que o constituinte estabeleceu entre esses títulos e seus respectivos conteúdos.
A nota técnica defende que, ao transferir para o Mapa a demarcação de terras indígenas, a MP desconsidera e despreza a distinção entre o desenvolvimento indígena e o não indígena, feita pela própria Constituição, e reconhecida pelo STF em julgamentos anteriores. Isso promove, na prática, a reedição de uma política integracionista superada pela constituição de 1988 e que gerou intensa violações dos direitos indígenas no século passado. Tal perspectiva pressupõe que devem os índios se aculturar, abrir mão de seu modo de vida e de produção tradicionais, para se integrar à sociedade como trabalhadores rurais conectados a uma política agrícola voltada para não indígenas.
“O índio não deve e não necessita ser integrado à sociedade brasileira, pois dela já faz parte desde sua gênese”, defende Bigonha na nota técnica. “Superado esse falso dilema da integração, como um dos atores que integram nossa sociedade, deve ele ser respeitado em sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231, CF/1988)”. Segundo o texto, qualquer medida que promova o retorno da política indigenista integracionista vai contra a Constituição.
Além disso, a transferência da demarcação de terras para o Mapa representa claro conflito de interesses entre a política agrícola e fundiária de caráter geral, defendida pelo ministério, e o direitos dos índios de preservar o modo de vida e suas terras tradicionalmente ocupadas. As atividades produtivas dos índios, garantidas pela Constituição, não são um subsistema da política agrícola, diz a nota técnica. O MPF defende que o Ministério da Justiça seria um “campo administrativo neutro, isento, não comprometido com a gestão dos interesses que se apresentavam antagônicos às peculiaridades culturais dos povos indígenas”.
A nota técnica ressalta que a política fundiária indígena esteve submetida à pasta da Agricultura até 1967, com o Serviço de Proteção ao Índio. Isso resultou no massacre de milhares de índios e nas atrocidades descritas no Relatório Figueiredo, o que acabou levando o governo a criar a Funai e subordiná-la, após 1988, ao Ministério da Justiça. “A experiência extraída do assassinato indígena e da impunidade administrativa é um alerta contra o retrocesso ao período do horror e da barbárie”, diz o texto. Da mesma forma, a transferência da Funai, sem as atribuições de demarcação, para o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, viola o direito dos índios à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Por fim, o MPF lembra que há uma convergência entre os interesses indígenas e a preservação do meio ambiente. Estudos comprovam que as terras demarcadas estão entre as mais bem preservadas. Segundo o texto, a MP 870, ao retirar da Funai a competência para realizar os estudos para a demarcação de terras indígenas, transferindo a matéria para o Mapa, inviabilizou a promoção de uma política ambiental que respeite a convergência entre o usufruto exclusivo das terras indígenas e a preservação do meio ambiente nesses territórios, o que implica retrocesso repudiado pelo sistema da Constituição, como já afirmou o STF na ADI 4.717.
Confira a íntegra da nota técnica: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/nota-tecnica-1.2019