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O grito da floresta

O grito da floresta
1 de outubro de 2014 zweiarts

No sul do Brasil, nós Kaingang nos vemos intimados a reafirmar nossa existência enquanto um povo indígena Jê Meridional, que se reconhece em continuidade histórica com um passado milenar, latente nas nossas narrativas, nos cantos, nas danças, nos sonhos, nas pinturas, nas metades e nos símbolos que compõem nossa cosmologia e nossa existência. Os símbolos estão presentes em vários “lugares” e se materializam, por exemplo, na natureza.
A vida Kaingang no seu território tem como centro do pensamento e das ações a noção de Gá/terra. Entretanto, Gá é mais do que um limite fundiário: reúne um conjunto de elementos naturais e sobre-naturais reconhecidos como próprios de uma terra tradicional Kaingang, na lógica deste povo indígena. Com o resgate dessa categoria central, temos como premissa do presente ensaio, partir do pensamento Kaingang e de sua percepção do meio e suas composições, pensar um bem viver indígena Kaingang nas suas diferentes dimensões e contextos. Se não considerarmos essa premissa, corremos o risco de reproduzir erros já cometidos no passado na relação do Estado com os povos indígenas, que desde sua episteme produziu barreiras intransponíveis nas relações do Estado e os povos indígenas.
A desconsideração da enunciação cultural na mediação em circunstâncias de grande distanciamento lógico entre aquele que se apresenta como agente estimulador do “desenvolvimento” e aqueles reduzidos à condição de “público alvo” de políticas, programas e projetos, pode, além de não atingir os objetivos, servir como mecanismo de fragmentação de modos particulares de viver.
No horizonte cultural Kaingang, Gá é reconhecida como um lugar onde a vida pode florescer e frutificar. O reconhecimento de que antepassados viveram e morreram em seus espaços é fundamental. A presença desses antepassados – denominados ká sἷ/tronco velho – consolida um sentimento de parentesco com a terra e produz um sentimento de tár/força, visualizado nos goj kujá, no fág, nos wên kagtá, que mobiliza toda a energia da sociedade Kaingang para se manter em um determinado território e orienta nossas reivindicações por nossas terras tradicionais, que sublinham o antigo território Kaingang no planalto meridional. Embora a fisionomia contemporânea de Gá se apresente na forma de “áreas degradadas”, em virtude dos sucessivos usos coloniais, que modificaram sua paisagem natural e por pouco não fez os Kaingang desaparecerem completamente, ainda assim os Kaingang reconhecem seus espaços como essencialmente íntegros e neles desejam permanecer. Mais do que isso: é a própria presença Kaingang que poderá concretizar o devir Gá de um determinado lugar, sendo a chave para a recuperação de seu aspecto integral, atualizando elementos do Waxa/passado no Uri/presente. Ou seja, conjugar metodologias científicas/tecnológicas contemporâneas de intervenção e relacionar essa metodologia com valores e princípios culturais do povo Kaingang os quais orientaram nossa existência historicamente.
Nesse sentido, estamos aqui afirmando nossa existência enquanto povo indígena diferente. Não temos que provar para o Estado de nossas lógicas e sim, exigimos o reconhecimento dessas, para minimamente pagar sua dívida histórica com nossa nação.
Seu reconhecimento deve imediatamente começar pelo reconhecimento do nosso território por parte do Estado Brasileiro, solicitando sua identificação e delimitação, seguida de demarcação e homologação nos termos do artigo 231 da CFB/1988, Decreto 1775/96 e Portaria 14/96.
O grito da floresta e nosso bem viver se constitui nessa perspectiva: de um desafogo, desabafo e nosso grito como guerreiros que sempre fomos. Atualmente, Gá se apresenta na forma desfigurada pelos usos coloniais sobretudo de monocultura, mas em sua essência é terra Kaingang, terra dos mortos que nela habitaram e dos vivos que lutam para recriar seu mundo e devolver a plenitude a Gá (mãe terra). Porém, não poderemos alcançar esses anseios sem a sensibilização e relativização cultural dos instrumentos e políticas públicas do Estado, que contemplem de forma eficaz nossa alteridade.
Com o exposto, gostaríamos de enfatizar aqui que o Estado deve se aproximar dialogicamente com os territórios indígenas, no sentido de fornecer subsídio e solucionar as problemáticas socioambientais, socioculturais e sociopolíticas, inicialmente inseridas pelo próprio Estado. Essa é peça chave na busca de uma autonomia e bem viver dos Kaingang na sua dimensão mais ampla.
Eixos de Ações:
1) Mapeamento dos Goj Kusá – fontes de água fria que irão nos balizar, no sentido de pensar a gestão da bacia hidrográfica e sua recuperação. Reconstituição das florestas próximas aos Goj kusa. As fontes de água fria são o coração de Gá e, a partir delas, o fluxo da vida poderá ser reativado e revitalizado.
2) Identificação das ilhas florestais remanescentes – assim teremos o zoneamento ambiental, que irá nos auxiliar para a recuperação das áreas degradadas e recuperação de ecossistemas. As ilhas florestais remanescentes, por menores que sejam, representam bancos de germoplasma e informação de Gá. Um único indivíduo de araucária, de grápia, de angico, de erva-mate, deve ser entendido como potencial de uma floresta inteira.
3) Reconstituição de corredores ecológicos entre as ilhas florestais e de campos naturais remanescentes, com ênfase na araucária e na erva-mate, incrementadas com frutas que atraem a fauna, bem como espécies vegetais de uso no artesanato. Os corredores ecológicos facilitarão a recuperação dos tecidos de Gá e seu potencial como fonte de alimentos íntegros – alimentos não cultivados, frutos da mata – vitais para Gá e seu bem viver.
4) Zoneamento da terra a partir das famílias da comunidade, potencializando sistemas agroflorestais, agricultura de base familiar incrementados com cultivares tradicionais da culinária Kaingang – mandioca, milho, abóboras, kumin, pixé. A força produtiva das famílias – respeitando sua autonomia, a organização social e política Kaingang baseada no sistema de metades, no respeito pelo jambré, pelo rengré, pelo kakrõ, pela fí (esposa, filha, sogra), pelo kujà, pelos pén, pelo poj-màg, essa é a força Gá. Estes sistemas produtivos interligam as hortas com a merenda escolar e tem potencial de receber incentivos da agricultura familiar. As famílias são o centro pulsante e elas são a força de produção e reprodução, pela sua própria existência, de Gá.
Temas transversais para articulação dos eixos:
– Soberania alimentar – com identificação de espécies utilizadas na alimentação tradicional Kaingang, identificando no território as unidades de recursos disponíveis atualmente e as potencialmente recuperáveis;
– Medicina Tradicional – com identificação de espécies utilizadas na farmacopéia tradicional Kaingang, identificando no território as unidades de recursos disponíveis atualmente e as potencialmente recuperáveis;
– Arte e artesanato – a mobilidade Kaingang no território e a visibilidade dos valores culturais estão na língua e no artesanato, atualizados no parentesco e na circulação do artesanato em todo o território. As políticas públicas devem potencializar, valorizar, incrementar o sistema produtivo do artesanato de cipó, taquara, os cestos e outros objetos da cultura material Kaingang,
– Cultura – danças, cantos, rituais, festas, língua, elementos que revitalizam o sistema de metades e a lei do respeito, próprias da sociedade Kaingang quando em sua forma de vida em Gá.

Autoria: CEPI – Conselho Estadual dos Povos Indígenas.

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