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Documento indígena: o V Encontro dos Kujã

Documento indígena: o V Encontro dos Kujã
28 de novembro de 2014 zweiarts

Nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2014, a capital do atual estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, região hidrográfica do Guaíba, originalmente com vegetação característica da Mata Atlântica e incidência de floresta ombrófila mista (floresta com araucária), na Terra Indígena Morro do Osso, um momento se fez. Marcado pelas narrativas, pelas memórias e reminiscências que compõem a figura dos Kujã na sociedade indígena Kaingang, o V Encontro dos Kujã emerge no contemporâneo como um contraponto às assimetrias em relação aos direitos existenciais desse grupo indígena Jê Meridional.

As danças, as pinturas, os cantos enérgicos que ecoam há milênios no planalto meridional, hoje dão o tom de nossa existência enquanto continuidade, identidade e resistência de um povo que habita esse território há milhares de anos antes do presente, antes de senhores e escravos, ricos e pobres, patrões e empregados. Vivíamos soberanos, absolutos, com dignidade e liberdade, numa lógica pautada no respeito com a natureza e sobrenatureza, que hoje quer uma pauta concreta e própria, uma pauta que respeite nossa cosmologia. Afinal historicamente fomos silenciados, oprimidos, tivemos nossos sagrados espaços apropriados pelos “visitantes” indesejados, onde a opção era a de aldeamentos diminutos ou a morte. Vimos nossas casas virarem cinza, nossas histórias e narrativas ridicularizadas e fomos entendidos como atrasados por quem pisava em nosso sagrado solo, nosso não no sentido patrimonial, mas como parte de nós.

Vimos o caos se manifestar na sua forma mais atroz, e com ele a morte. De nossos guerreiros, dos nossos velhos, das nossas mulheres, muitas inclusive escravas do corpo gélido e desumano de quem nos caçava a esmo, nem mesmo as crianças escaparam das garras de quem se dizia civilizado. Um país e um estado que se nega a admitir sua dívida histórica com os povos indígenas, um Estado que se “desenvolveu” e consolidou-se sobre os corpos dos nossos antepassados, onde o progresso e ambição lhe conferem as mãos encharcadas do sangue de nossos irmãos.

Isso é para lembrar que atualmente sobrevivemos em terras diminutas, que foram demarcadas, e na beira de rodovias sem o mínimo de condições de um bem viver. Nós os Kaingang somos a 3ª maior população de originários do Brasil e hoje vivemos os dias cinzentos e incertos, marginalizados em nossa própria terra, por uma sociedade que se fez sobre o nosso sofrimento.

Porém, aqui nesses dias e no improviso de estruturas, ressignificamos nossa luta e resistência, batizados na figura dos Kujãs, interpretado por muitos como eixo semântico na organização sociopolítica Kaingang. Não poderia haver relação mais prática, pois se o eixo semântico é o lugar virtual em que se articulam os pólos opostos criadores da significação, o Kujã tem exercido esse papel ao longo de nossa existência entre Kamê e Kairu, as duas metades que compõem o mundo Kaingang. Juntamente com outros seres e símbolos, o Kujã transita e totaliza as articulações nas supostas oposições das metades, que são inexoravelmente indissociáveis e entre medicina tradicional, tradutor das falas da floresta, dançador, cantor e contador de histórias nostálgicas do nosso povo, essa figura é símbolo de nossa resistência.

Outros personagens do mundo Kaingang, como as parteiras tradicionais e os guerreiros dançadores são, no concreto, o pulsar de uma identidade que aqui afirma e grita que não vai deixar de existir, pois somos os filhos da mata, os piolhos da mata, o espírito da mata, somos Nãn Gá, somos kokoj, somos pó, somos Ka fár, somos Jorge Kagnõn Garcia, somos Kaingang. E exigimos respeito as nossas pautas, exigimos que órgãos estatais dialoguem com nossos costumes, presentes nos Kujã, nas parteiras, e valorize a farmacopeia tradicional Kaingang. Exigimos da Fundação Nacional do Índio/FUNAI e do Ministério da Justiça o reconhecimento de nossos territórios por parte do Estado brasileiro, solicitamos sua identificação e delimitação, seguida da demarcação e homologação nos termos do artigo 231 da CFB/1988, Decreto 1775/96 e Portaria 14/96.

Este evento exige um basta nas assimetrias e na falta de equidade na relação com os povos indígenas brasileiros, que nem sequer tem a liberdade de expressar suas categorias etnológicas na resolução de problemáticas. Um basta na criminalização de lideranças; que sejam feitas investigações sólidas nos crimes contra indígenas como o caso do professor indígena de Vicente Dutra. Um basta na desproporcionalidade de força quando se trata de perseguir indígenas, que no seu mais recente caso na Terra Indígena Kandoia deixou a comunidade em estado de choque, com seu espetáculo de mostrar força.

Por fim, este evento reforça a importância na demarcação de terras indígenas, afinal sem a demarcação de nossas terras tradicionais, não teremos educação indígena de qualidade, não teremos saúde de qualidade, não teremos nem sequer nossa cultura. E aqui o movimento e resistência Kaingang se juntam à pauta de outros contextos latino-americanos, no emprego da categoria bem viver. Essa categoria é expressão da nossa posição ética frente à sociedade, à natureza e à sobrenatureza, traduzindo nossos modos próprios de pensar, viver e sentir. E, assim como para outros povos, essa categoria é nossa resposta e alternativa a categorias impostas por agências estatais, tais como “etnodesenvolvimento”, “sustentabilidade” ou “desenvolvimento sustentável” na busca por uma relação de igualdade, justiça e liberdade.

Não seria possível aqui dimensionar a cultura Kaingang latente nas atuais gerações, como já existiu e continua a existir, que busca no passado os sentidos de existência e resposta para constituir um bem viver indígena, este que repousa na demarcação de terras indígenas.

Por fim este documento traduz a voz e representatividade das Terras Indígenas de Nonoai, Iraí, Vicente Dutra, Rio da Várzea, Inhacorá, Votouro, Xingu, Campo do Meio, Apucaraninha, Morro dos Cavalos, São Leopoldo, Morro Santana, Ligeiro, Kandoia, Lomba do Pinheiro, Guarita, Tabaí e Morro do Osso.

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