Entre os dias 15 de fevereiro a 1
de março de 2010, foi realizada a oficina de formação e revitalização da língua indígena apurinã na aldeia Mipiri, na Terra Indígena Água Preta/Inari, no município de Pauini, no Amazonas. A oficina vinha sendo planejada desde fevereiro de 2009 e contou com a colaboração e apoio financeiro do COMIN e das secretarias de educação dos municípios de Boca do Acre e Pauini. Também teve a colaboração e apoio do CIMI de Boca do Acre, da FUNAI do Acre e da SEDUC do Amazonas. Eu participei como assessor/facilitador.
Estiveram reunidos 62 Apurinã da região de Boca do Acre e Pauini, sendo 36 de Pauini, 24 de Boca do Acre e 2 de Cacoal (Rondônia). Os participantes eram professores indígenas da rede municipal e lideranças de comunidades. A maior parte dos participantes não é mais falante da língua apurinã. Por isso, foi muito importante a participação das mulheres e dos homens que ainda dominam a língua. Essas pessoas foram os professores de fato. A oficina teve início quando, no dia 14 de fevereiro, os Apurinã de Boca do Acre desceram o Rio Purus num barco emprestado pelo CIMI e com o apoio da prefeitura de Boca do Acre, chegando na aldeia Mipiri na manhã do dia seguinte. Lá, reuniram-se com os demais participantes da oficina que vieram desde os mais distantes lugares do município, graças ao apoio logístico da prefeitura de Pauini.
A recepção e o início da oficina foram de muita expectativa. A intenção era realizar uma oficina que valorizasse a cultura e os modos tradicionais de alimentação. Assim, com alguma dificuldade, foi possível realizar uma oficina com alimentação variada comprada na própria aldeia, como carne de caça, peixe e frutas. No que concerne ao estudo da língua apurinã, os participantes tinham muita expectativa quanto ao estabelecimento de uma grafia uniforme para a região. Nesse sentido, a oficina apoiou-se na pesquisa de Sidney Facundes, do museu Goeldi de Belém, que tem elaborado material didático experimental e uma proposta de grafia para a língua apurinã. Dessa forma, estudamos o alfabeto, substantivos, verbos, adjetivos, estruturas de frases, pronomes, algumas conjugações verbais e, como parte importante do exercício, os professores indígenas elaboraram textos com a ajuda daqueles que dominavam a língua.
Durante a oficina, os participantes também tiveram a oportunidade de aprender sobre a cultura apurinã. Ouviram histórias, aprenderam sobre a divisão dos clãs (Miutymãnety e Xuapurynyry); que Miutymãnety não come meriti (caititu), kapixi (coati) e o kitsũpy (sarapó, uma espécie de peixe) e que Xuapurynyry não come o iũku (nambu galinha), o tsãkary (nambu azul), maiũpyra (nambu encantado), pathãaryky (nambu relógio) e o Makukua (macucau). Aprenderam que os nomes próprios em Apurinã já indicam a qual clã se pertence; relembraram que os Apurinã chamam aqueles que pertencem ao mesmo grupo de nepyry (meu irmãos de clã ou primo) e aqueles que pertencem ao outro clã de numinapary (meu cunhado).
Depois de vários dias estudando, conversando e discutindo, os mais velhos foram recordando os nomes dos grupos familiares aos quais pertencem. Entre os participantes encontramos Iũpiryakury (família do japó), Upitaakury (família do tambuatá de cabeça chata), Hãkytywakury (família da onça), Exuwakury (família do tamanduá bandeira), Ximakury (família do peixe), Kyrypakury (família do rato), Kamỹryakury (família da arara), Kairywakury (família do mambira), Kemaakury (família da anta), Sutyakury (família do veado roxo). Também causou muita alegria entre as lideranças quando finalmente os mais velhos conseguiram encontrar uma palavra na língua apurinã para designar o cacique ou as lideranças em geral, a saber, kiumãnety. Até então, eles não sabiam definir qual seria a palavra correspondente. Utilizavam as palavras do português.
A festa de encerramento do curso (pupỹkary kyynyry) também propiciou experimentar na prática a cultura apurinã. Os participantes da oficina confeccionaram vestimentas, pintaram seus corpos, dançaram e cantaram. A festa começou ao meio-dia e foi até o amanhecer do dia seguinte, quando os participantes foram dispensados para retornarem às suas aldeias. Como muitos expressaram durante a oficina, estavam agora retornando com um conhecimento que os ajudará a continuar estudando e anotando histórias de seu povo. A história do Kanynary, por exemplo, que foi anotada por Iueky (Francisco Marcelino da Silva Apurinã) durante a oficina, causou muita risada por causa da sua rima e por causa da lição que traz. Segue a história na língua apurinã e uma tradução em português.
Kanynary Sãkiry – Conto do Kanynary
Kanynary meety kusanaty. Ywa takaperu sytyherepakyru. Ywa yepyrywakury ynawa umanatary. Ynawa trary: amaũkary Kanynary. Ywa ymarutapeka. Kanynary kama ytukury. Ywa yutykasawaky, ywa sary apary yepyry. Hỹthe napa, ytxa! Ey, atha sary, ynawa trary! Ynawa ywakata sypeka. Ynawa trary: watxa amaũkary Kanynary. Ynawa yutyka ytukury, aykurutapery ypukỹa. Kanynary ytukury manape awary. Hãty trary: kune awary Kanynary. Hãtune txary: nepytykara. Ynawa seype. Hãty txary: nytakaru Kanynary tanyru. Kune pytakaru, nutakanery takaru, hãtune trary. Apuka aykumunhi, ynawa trary. Waikai Kanynary! Ywa trary: waykarãnuta! Hỹkanỹka! Ynawa trary: awapãny Kanynary. Ynawa seype.
Kanynary era pajé forte. Ele era casado com uma mulher bonita. Os seus primos tinham raiva dele. Eles disseram: vamos matar Kanynary. Ele já sabia disso. Kanynary fez o seu roçado. Quando ele foi queimar o seu roçado, ele foi buscar os seus primos. Eu vim buscar vocês, ele disse! Ei, nós vamos, eles disseram! Eles foram com ele. Lá eles disseram: agora vamos matar Kanynary. Eles foram queimar o roçado, arrodearam com fogo. Kanynary estava no meio do roçado. Um disse: Kanynary não está mais vivo. O outro disse: é verdade. Dessa forma, eles voltaram. Um disse: vou casar com a mulher do Kanynary. Você não vai casar, eu é quem vou casar, o outro disse. Vamos para a casa do Kanynary, eles disseram. Olá Kanynary! Ele disse: Olá! Pode subir! Eles disseram: Kanynary ainda está vivo. Eles voltaram.