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Experiências na defesa dos direitos indígenas na Amazônia brasileira – testemunho e fé

Experiências na defesa dos direitos indígenas na Amazônia brasileira – testemunho e fé
1 de janeiro de 2006 zweiarts

CONTEXTUALIZAÇÃO

Na Amazônia o contato dos povos indígenas com a dita sociedade envolvente iniciou em meados do séc. XIX. Até então os povos indígenas habitavam imemorialmente todo esse território, cada um com sua cultura, sua forma de vida e sua dignidade. A partir do contato se inicia uma história sangrenta e genocida. As frentes extrativistas do látex organizavam expedições armadas denominadas “correrias” para “limpar” áreas ocupadas pelos povos indígenas  e nelas colocar seus empregados, os seringueiros nordestinos. Com isso milhares de indígenas foram mortos e dezenas de povos extintos. Os que sobreviveram a esses massacres foram obrigados a trabalhar para os “patrões” nos seringais, assumindo uma identidade genérica de “caboclo”, praticamente num sistema de escravidão, onde a  vida humana valia muito pouco. Além de toda violência física e econômica, houve uma enorme violência cultural, onde não havia tempo nem espaço para que esses povos pudessem reproduzir sua própria forma de viver e até de morrer, observando seus rituais de cura e de sepultamento. Aliadas a essa escravidão vieram as doenças trazidas pelos não-índios, como por exemplo, a gripe e sarampo que ceifaram muitas vidas.

Por volta da década de 70, com apoio de organizações não-governamentais e Igrejas inicia-se uma fase onde os povos indígenas buscam seus direitos de serem reconhecidos como etnias diferenciadas, com suas línguas e culturas e reivindicando suas terras tradicionais.  Esse processo de luta pelos direitos vem também acompanhado de um processo de recuperação da auto-estima étnica onde eles  não aceitavam mais a denominação genérica de caboclos, se autodenominando como povo Kaxinawa, Madija, Jaminawa, Arara, Gavião…

Nos estados do Acre e Amazonas e noutras regiões onde o acesso às terras indígenas  é fluvial, a queda do extrativismo da borracha favoreceu a reorganização de alguns povos indígenas, pois muitos não-índios que viviam do extrativismo do látex nos altos dos rios foram morar nas periferias das cidades. Já no estado de Rondônia a falência dos seringais não teve esse efeito porque neste estado houve um violento processo de colonização exploratória da madeira, minérios, garimpos, abertura de estradas, fazendas… Tudo isto, levou à extinção de vários povos indígenas e a uma acentuada depopulação. Há muitos povos com um número reduzido de pessoas.

Apesar de todo esse processo de violência, de usurpação das terras e de vidas indígenas, esses povos estão num estágio de reorganização, de recuperação de seus territórios e de sua auto-estima. Sua capacidade de organização foi demonstrada com os avanços constitucionais alcançados na Constituição Federal de 1988. Espelhado na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o texto constitucional estabeleceu uma nova relação dos povos indígenas com o Estado, de reconhecimento e proteção à diversidade étnica.

Ressalte-se que essa  nova relação  do Estado com os povos indígenas está dentro de uma nova relação do Estado  com a sociedade como um todo.  Simbolicamente a Constituição Federal  é o marco jurídico da transição democrática. E é a partir dela que se inicia a institucionalização dos direitos humanos em nosso país. Além dos direitos e garantias individuais, o texto constitucional incorpora a tutela dos direitos coletivos e difusos e acena para a especificação dos sujeitos de direitos. Os povos indígenas passam a ter  constitucionalmente  seus direitos específicos.

Contudo, quase 18 anos após a promulgação dessa Constituição, nota-se que  ainda  há um descompasso muito grande entre o que está  escrito e o que é vivido.  Ainda hoje  restam resquícios do tempo dos massacres e da escravidão, de preconceito e  de violência, de invasão das Terras Indígenas e de suas  riquezas naturais e de negação da cidadania indígena.  Ainda hoje esses povos não conseguem gozar plenamente dos seus direitos específicos e nem dos direitos humanos e liberdades fundamentais em geral,  no mesmo  grau que os demais não-índios da população brasileira.

ALGUMAS EXPERIÊNCIAS NA DEFESA DOS DIREITOS DOS POVO INDÍGENAS

Na defesa do direito à terra

Sem sombra de dúvida, uma das principais razões de agressões aos povos indígenas está relacionada à questão da terra.  A morosidade do governo na demarcação e desintrusão dessas terras gera muita  violência contra esses povos.   Segundo o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, em 2005, 38 indígenas foram assassinados. A maioria dessas mortes está relacionada a conflitos fundiários.  Só no estado de Mato Grosso do Sul, onde atualmente se acentuam as disputas pelas Terras Indígenas ocorreram 28 assassinatos.

Conforme a Anistia Internacional os povos indígenas brasileiros continuam sofrendo violências e privações econômicas  pelo fato do governo e do judiciário não protegerem seu direito constitucional à terra.  Muitas comunidades estão fora de seus territórios tradicionais, morando na beira de estradas, sofrendo todo tipo de privações e violências, enquanto suas terras estão ocupadas por fazendeiros. Lideranças estão sendo assassinadas, crianças morrendo por desnutrição, jovens  cometendo suicídios, por não terem perspectivas de vida,  enquanto o presidente do órgão indigenista oficial, juntando-se a vozes de fazendeiros,  alardeia que os povos  indígenas  já têm terra demais.

Aliado a essa violência do Poder Executivo que não tem cumprido com seu dever constitucional de demarcar as Terras Indígenas, o Supremo Tribunal Federal tem obstruído ou retrocedido processos demarcatórios, o que traz muita insegurança jurídica para os povos indígenas e  seus apoiadores e aumenta a violência. Ter “políticas claras e estratégias específicas para enfrentar as   questões persistentes de  abusos dos direitos humanos, que afetam a população indígena do Brasil”  é o apelo que a Anistia faz ao governo brasileiro.

Apesar da Constituição Federal de 1988 ter estabelecido  um prazo de 05 anos para demarcar todas as  Terras Indígenas, até hoje só 38% das 850 áreas  estão regularizadas,  conforme dados do CIMI.

Além da morosidade na demarcação das Terras Indígenas o governo brasileiro também não tem dado proteção a elas. Muitas  são invadidas por caçadores, pescadores, madeireiros, garimpeiros, fazendeiros. Em alguns casos a invasão é tão grande que as próprias comunidades indígenas não têm dado conta de  fazer essa proteção. Em outros, alguns indígenas  acabam não resistindo ao assédio desses invasores e permite-lhes que explorem as riquezas de suas terras. Muitas lideranças estão sendo processadas por terem tentado contra a vida desses invasores.

A política de estabilidade macro-econômica vigente no nosso país exige uma rígida política de exportação, especialmente da soja. Esses sojicultores, com créditos facilitados avançam pela Amazônia, invadem Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Nesse espírito desenvolvimentista, os povos indígenas, que tem uma relação cultural com a terra ligada aos seus sistemas de crenças e conhecimentos, que não a têm como objeto de comércio ou mera produção, são vistos como preguiçosos, como  aqueles que impedem o  progresso, por isso, não necessitam de terras suficientes para sua sobrevivência física e cultural.

No estado de Rondônia, a floresta amazônica foi substituída pela pastagem. Hoje só existem florestas em grande densidade nas Terras Indígenas e nas Unidades de Conservação. São ilhas verdes rodeadas por fazendas.  Isso as torna  muito cobiçadas por todo tipo de explorador. Elas  pertencem à União, mas não há por parte do governo federal uma política eficaz de proteção dessas áreas.

Em meio a esses conflitos, o COMIN junto com outros parceiros e com as organizações indígenas tem ajudado esses povos orientado-os nos seus direitos, assessorando-os nas suas reivindicações e exigindo do governo providências que garantam o seu direito à terra.

Conflitos fundiários e a discriminação racial são ao nosso ver as principais razões de violência contra os povos indígenas. Esses dois motivos podem estar interligados ou não. Abaixo descreveremos algumas de nossas experiências no acompanhamento de denúncias e investigação de crimes cometidos contra indígenas.

Acompanhamento à  investigação e processamento de crimes contra os povos indígenas

Raimundo Silvino Shanenawa foi sumariamente executado, por um policial militar,  na tarde de domingo do dia 14 de julho de 1996 em frente a sua aldeia no município de Feijó-Acre. Consta na denúncia do Ministério Público que a vítima e mais dois outros Shanenawa tiveram uma briga corporal com dois policiais militares. Índios e policiais estavam embriagados. Em dado momento, o policial José Rosseni Muniz de Moura sentou sobre as costas da vítima, puxou-lhe os cabelos e disparou um tiro na sua nuca. Os outros dois Shanenawa tentaram fugir do local, quando cada qual recebeu um tiro  pelas costas. Os indígenas  estavam desarmados. Silvino morreu no local.

Por quase 10 anos os Shanenawa e seus aliados lutaram para que os policiais fossem a julgamento. O primeiro policial foi impronunciado,   conforme o Tribunal de Justiça do estado do Acre, não havia provas contra ele.  Por morosidade do Judiciário, somente no dia 04 de agosto de 2005 o policial Rosseni foi levado ao Tribunal do Júri. Os Shanenawa e seus aliados não queriam que o julgamento ocorresse na Comarca de Feijó, dado ao alto índice de preconceito da população local contra os povos indígenas daquela região. Não conseguimos transferir o julgamento para a capital.   À noite do dia do julgamento saiu o veredito final: O policial  Jose Rosseni Muniz de  Moura foi absolvido, com 6 votos a 01,  por legítima defesa.

Esse é só um dos exemplos de violência contra os povos indígenas. A grande maioria dos assassinatos contra esses povos não chega à fase do julgamento, mas quando chega, muitos de  seus autores são absolvidos por teses absurdas. A demora no julgamento também é outro fator de impunidade. Nesses quase 10 anos, nesse caso específico, muitas testemunhas desapareceram, outras não quiseram mais depor, o espírito de indignação foi desaparecendo e as relações  do acusado, que continuou sendo policial naquele pequeno município,  com a sociedade não-indígena  de Feijó foi contribuindo para sentimentos favoráveis a ele.

Em geral, a impunidade aos agressores de indígenas na Amazônia, em especial,  já começa na fase da investigação. A demora da polícia em se deslocar para o local do crime, que muitas vezes fica nas cabeceiras dos rios e igarapés, lugares de difícil acesso, é uma prática comum, o que permite a fuga do acusado e o desaparecimento das principais provas. Perícias, exames complementares são práticas incomuns nesses lugares distantes. Aliado a essas dificuldades geográficas, há o desinteresse e a falta de estrutura da autoridade policial para o seu deslocamento.   Em muitos crimes, sequer há instauração de inquéritos policiais. “Mata-se índio como se mata um cachorro” disse certa vez a líder Esmeralda Jaminawa -Arara.

Por outro lado, quando indígenas são os suspeitos de autoria de crimes contra não- indígenas, pode-se observar que  há sempre uma comoção maior da sociedade, a investigação policial se inicia logo e imediatamente se identifica o indígena como autor do crime, isto porque, em geral, ele não tem malícias, não foge do local dos fatos, não procura criar subterfúgios para dificultar a investigação e à primeira investida da autoridade policial, acaba confessando que é o autor do crime.

A punição exemplar  aos  agressores dos povos indígenas passa também pelo melhor aparelhamento do Judiciário e do Ministério Publico. Em geral, nas Comarcas do interior da Amazônia  há uma constante ausência  e rodízio de juízes/as e promotores/as. É comum não ter juízas/es e promotoras/es nas sedes das Comarcas pequenas. Isso dificulta por demais o andamento dos processos, provoca desânimos e desestímulo a quem quer procurar a tutela jurídica  dos seus direitos  e gera a certeza da impunidade.

Ivanilde Shanenawa funcionária  do único hospital de Feijó, no final de 2004 foi agredida verbalmente por um médico. Orientada por nós, imediatamente ela foi ao Ministério Publico reclamar seus direitos. Até hoje  não ocorreu a primeira audiência e não se sabe quando isto ocorrerá. Em geral, quando esses juízes/as e promotores/as passam nessas Comarcas,  suas prioridades são dar seguimento aos processos  de grande monta como os homicídios e tráficos de drogas. Crimes, considerados de menor gravidade,  não estão na lista dos processos que primeiro devem ser analisados. Essa morosidade que muitas vezes acaba se transformando em impunidade, perpetua os abusos e facilita a sua repetição.

Existem, porém,  exemplos da ação  do Judiciário que nos causam ânimo: na data de 22 de abril de 2001 uma colunista social, referindo a um encontro de povos indígenas na cidade de Rio Branco-AC, escreveu em sua página do jornal,  que naquele encontro os indígenas  “exalavam mau cheiro”,  que os visitantes não-índios mal podiam agüentar. Indignados com sua opinião depreciativa e preconceituosa, veiculada através de um meio de comunicação, a União das Nações Indígenas (UNI), o Conselho Missionário Indigenista (CIMI) e o Conselho de Missão Entre Índios (COMIN) fizeram uma representação junto ao Ministério Público Federal contra a referida  colunista, o que resultou numa ação penal por discriminação racial. Naquele mesmo ano, a Justiça Federal, circunscrição judiciária do Acre, condenou-a ao pagamento de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) pelo crime cometido. É uma quantia pequena se  comparada ao tamanho da agressão, mas significativa do ponto de vista de uma resposta imediata e positiva por parte do Judiciário, o que  motiva os indígenas e seus apoiadores a continuarem  denunciando esse tipo de agressão, que fere tão profundamente a dignidade humana desses povos. A condenação serviu ainda como exemplo para outros profissionais de comunicação que passaram a ter mais cuidado ao emitirem suas opiniões sobre esses povos.

Entre tristezas e alegrias na punição aos agressores dos povos indígenas, pode-se dizer  que esses povos ainda  são muito vulneráveis a todo tipo de agressão, física e moral.  Sua vulnerabilidade se acentua por falta de proteção do Estado. A falha em investigar, processar e julgar esses crimes contribui significativamente para a impunidade e continuidade da sua prática. Além de punir exemplarmente os agressores, o Estado precisa dar uma proteção especial a esses povos, etnicamente diferenciados, constantemente agredidos por serem indígenas.

Mulheres indígenas

Infelizmente, no Brasil ainda é tido como desprovido de direitos aquele ou aquela  que não tem posses e que não faz parte da cultura dominante. Índios,  negros e  pobres em geral,  fazem parte da escala da discriminação.  Tem-se a idéia de que é natural a desigualdade entre as pessoas e os povos.

Essa situação de desigualdade econômica e vulnerabilidade racial se acentua quando se fala em mulheres indígenas. Estas sim são vistas por muitos homens não-índios e até por órgãos do Estado como absolutamente desprovidas de qualquer direito, inclusive  do seu corpo.

No início de 2005, uma adolescente Apurinã grávida de 09 meses, com dores de parto, foi ao único hospital de Boca do Acre, interior do estado do Amazonas para ter o seu bebê. O médico do hospital levou-a para a sala de parto, trancou a porta e a estuprou da forma mais sórdida possível. Depois fugiu do município. Foi instaurado o inquérito policial, mas até hoje o médico continua impune.

Em outubro de 2002,  trabalhadores de uma firma de construção civil estavam numa aldeia Jaminawa construindo casas de artesanatos. Os homens Jaminawa tinham ido para a cidade. Aproveitando que as mulheres estavam sozinhas, os trabalhadores deram bebida alcoólica para elas e depois  estupraram algumas  delas, inclusive  uma criança de 12 anos de idade. Nesse caso sequer foi instaurado inquérito policial sob a argumentação do difícil acesso à aldeia e da possibilidade das Jaminawa,  constrangidas, não contribuírem nas investigações.

Em geral, os representantes dos órgãos competentes para investigar  crimes não dão muita importância para esse tipo de agressão, quando praticado contra mulheres indígenas. É senso comum na nossa sociedade machista e discriminatória que os povos indígenas vivem sob a promiscuidade, que não há regras de relacionamentos entre eles, que as indígenas mantém relações sexuais com qualquer um. E por isso, conforme nos disse um desses representantes, as indígenas se tornam presas fáceis do “homem branco”. Um estupro sofrido por uma indígena pode ser visto com desconfiança e até mesmo com  indiferença.  Com isso, a agressão às mulheres indígenas passa a ser legitimada até pelo próprio Estado.

Formação das comunidades

Um dos caminhos para superação desse estado de violência é a capacitação e instrumentalização dos povos indígenas para o exercício dos seus direitos.  Conhecer os seus direitos e saber como exercê-los pode ajudá-los a denunciar as agressões e exigir a punição dos agressores. “A gente só pode lutar pelos direitos que conhece” disse uma vez o líder Gersem Baniwa.   Nessa intenção de que a efetivação dos direitos indígenas só pode ocorrer se eles participarem desse processo é que desde 1997 nosso trabalho sempre esteve mais voltado para a capacitação desses povos.

Contudo, conhecer, saber como exercer, ter vontade e buscar a reparação dos seus direitos ainda  não é suficiente para o seu total cumprimento. O Estado, especialmente as Secretarias de Segurança Pública, Ministério Público e  Judiciário precisam estar mais preparados para atuar  com grupos étnicos e seus direitos específicos.  Também os representantes desses órgãos precisam de formação para lidar com direitos indígenas.

Se de um lado, esses órgãos tendem a cometer discriminação racial contra os etnicamente diferenciados, de outro, no espírito de que “todos são iguais perante a lei”, a tendência é  ignorar os direitos específicos desses povos, o que  acaba prejudicando-os em todos os aspectos. Reconhecer que eles são culturalmente diferenciados, que têm línguas e formas próprias de produção e reprodução de conhecimentos, inclusive  sistemas jurídicos  próprios,  pode ajudar esses órgãos a de fato respeitar e fazer respeitar os direitos humanos dos povos indígenas.

TESTEMINHO DE FÉ E COMPROMISSO

Iniciei a trabalhar com os povos indígenas na Amazônia  em 1987, após ter concluído o curso de teologia na Escola Superior de Teologia da IECLB.  No inicio desse trabalho, junto com meu companheiro Nelson Deicke, que também é pastor,  morei em aldeias do povo Kulina, no Alto Rio Purus, estado do Acre, dentro de uma proposta de pastoral de convivência, que tinha como princípio não levar um projeto pronto, mas conhecer a cultura e os valores do outro etnicamente diferenciado, sentir e ouvir do próprio povo no que o COMIN poderia apoiá-lo.

Morando com os  Kulina, distante cerca de 05 dias de barco da primeira vila, pude perceber claramente que os valores evangélicos de amor ao próximo e humanidade estão muito mais presentes, como que enraizados, nas comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem distantes das cidades, tirando quase tudo que necessitam para a vida da natureza. É como se a própria natureza e o próprio  ambiente humanizasse essas pessoas. Umas precisam das outras e elas se  ajudam mutuamente e conseguem com isso dar respostas para os seus problemas cotidianos mais locais. Contudo são mais vulneráveis ao que vem de fora, às políticas  e projetos econômicos com os quais não lidam no dia a dia. É justamente para assessoria e apoio nestas questões, da terra, dos direitos indígenas, da educação e da saúde, que veio o primeiro pedido de apoio do povo Kulina e depois dos demais povos do Acre e Sul do Amazonas.

Dessa forma, senti concretamente que a missão da Igreja entre os povos indígenas há de se preocupar com as questões do cotidiano da vida. Falar de Deus nesse trabalho é falar da vida e de todas as coisas que a ameaçam. É apoiar a organização dos povos indígenas na defesa da terra, dos seus direitos, da sua cultura e modo de viver próprio.É também aprender com eles a nos conhecermos melhor, a redescobrir valores humanitários que muitas vezes ficam adormecidos dentro de nós, na nossa sociedade de consumo.

Atuando nessas áreas mencionadas, dediquei-me ao estudo de direito como forma de uma formação complementar, por ser esta uma área de apoio e assessoria muito necessária para as comunidades indígenas, uma vez que seus direitos estão cada vez mais ameaçados.

Ajudar a  defender os direitos dos povos indígenas  no Brasil é difícil, desafiante, mas ao tempo  gratificante pela aprendizagem que se ganha,  nas derrotas e nas vitórias,  em todo o  processo de  ampliação, conquista  e  garantia desses direitos.

A violência desses direitos é em parte resultado da nossa cultura colonialista, escravagista e discriminatória que nos acompanha nesses mais de 500 anos de dominação sobre esses povos e sobre os negros. Ainda hoje temos dificuldade de reconhecer a humanidade desses povos. Ajudá-los a defender seus direitos não deve  ser apenas um  esforço para superar a primeira das grandes violências  no nosso país, mas uma condição político-moral para enfrentarmos  as demais injustiças.

Teologicamente sempre entendi que a Justiça de Deus, tanto no At quanto no NT não se dá na corte, ou no Templo. Ela não é interior ou espiritual, mas é compreendida como vida concreta, humana, histórica. Se dá nas relações humanas, no cotidiano da vida, na mais básica e elementar parte da vida, onde as pessoas se relacionam para prover o “pão de cada dia”.

Seguir o caminho de Cristo é graça, é partilha, é exercitar o coração aberto, é ajudar a  lutar para que todos e todas tenham comida na mesa e dignidade respeitada. É contribuir  para que as vozes desses povos sejam ouvidas. O COMIN  quer contribuir para que os povos indígenas sejam sujeitos de sua própria fala,  respeitados na sua dignidade e no seu direito à territorialidade, com  direito de viverem  de acordo com seus usos, costumes e tradições.

Jandira Keppi

Artigo escrito para Secretaria Geral para Assuntos Internacionais e Direitos Humanos.
Federação Luterana Mundial.

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